terça-feira, 27 de novembro de 2018

"Diários da Corte" reúne artigos de Paulo Francis, o maior polemista brasileiro




Quando morreu de infarto em Nova Iorque em 1997, Paulo Francis era um jornalista renomado. Articulista no horário nobre da Globo, trejeitos imitados por Chico Anysio, vítima de processo milionário pela Petrobrás (cujo alto escalão ele acusara de corrupção, veja só). Quem o conheceu nessa etapa final da vida provavelmente viu a criatura se tornar maior que a criação. O que é um grande erro. A obra de Paulo Francis tem poucos paralelos na crítica sociopolítica e cultural nacional.

Diários da Corte, de 2009, é uma coletânea de artigos escritos por Francis para a Folha de São Paulo de 1976 até 1990, quando deixou o jornal após brigar com o ombudsman e não se sentir defendido pelo diário. A seleção foi feita pelo jornalista Nelson de Sá e é uma excelente oportunidade para (1) ser iniciado à obra de Francis e (2) compará-lo com os comentaristas sociopolíticos  da atualidade.   

De juventude trotskista, Francis iniciou a vida cultural como crítico de teatro. Logo passaria para a crítica política, sem abandonar os comentários culturais e do cotidiano.

Durante a Ditadura Militar se juntou a gente do calibre de Millôr Fernandes, Henfil, Ziraldo, Ivan Lessa e Jaguar na edição do Pasquim, um jornal revolucionário na linguagem, nas críticas ao regime militar e aos costumes sociais da classe média brasileira da época.

Paulo Francis era um elitista auto-indulgente. Morava em Nova York e de lá comentava sobre a pobreza cultural brasileira. Fazia troça de todo e qualquer tipo de cultura popular (os Beatles eram um alvo frequente) e tecia loas infinitas à música erudita (Wagner era um predileto), óperas, teatro e a alta Literatura.

Com o passar dos anos, Francis, assim como outros intelectuais de origem trotskista (Christopher Hitchens sendo o mais memorável deles), se encantou com a direita política e seu elitismo ficou ainda mais evidente e proselitista.

A coletânea é para se ler discordando. Por vezes, Francis é misógino, mesquinho e intolerante. Mas o que importa aqui não é o o quê”, mas o “como”. A mistura fluida de linguagem intelectual e coloquial e o amálgama de citações, faz você ler o livro com um bloquinho de anotações para anotar cada nome citado. Glauber Rocha, Woody Allen, Bernardo Bertolucci, Ingmar Bergman, Truman Capote, John Updike, Edmund Wilson, Gore Vidal são algumas das referências esmiuçadas por Francis. Os artigos em que ele faz um panorama comentado sobre a história da democracia nos EUA, sobre o racismo de cor e sobre a Revolução Russa valem por uma aula de história.

Achei que a seleção pecou ao inserir alguns artigos que envelheceram mal fora da sua contextualização. E, pessoalmente, o Paulo Francis comentarista cultural funciona muito melhor que o Paulo Francis comentarista político. Ler sua crítica de "Apocalipse Now" ou de "A Sangue Frio" após ver/ler a obra é daquelas experiências tão enriquecedoras intelectualmente que nada mais pode ser visto como se via antes. 

Fragmentos:

Sobre as celebridades: "O que bebem as celebridades? A nova safra, do Studio 54, fica no vinho branco, qualquer um, ou Tab, coca-cola, sem açúcar, preservando seu organismo para cocaína. (...) Sobre o que conversam celebridades quando estão juntas? Nada, se juntam para serem fotografadas e citadas. (...) Revistas do tipo People atestam o fenômeno que reflete uma total corrupção e uma subserviência completa em face dos que darwinianamente sobrevivem no mar de lama, criaturas da lama, mas perfumadas. Falem mal de mim, desde que falem, é a moral dessa sociedade."

Sobre exposição pública da vida privada: "continuo considerando esse strip-tease psicológico perante estranhos uma forma particularmente vulgar de narcisismo".

Sobre a misantropia: "Aos 50 anos, sofro do que se chama de accidie, um desinteresse por praticamente todos os temas a que dedico minha atenção. Um ceticismo natural, ou que ao menos data dos meus oito anos de idade, se tornou compulsivo e obsessivo. Não acredito em nada, não espero nada, de religião (isso há muito tempo), política, filosofia, etc."

sexta-feira, 13 de abril de 2018

"Cartas a um Joven Constestador" é a melhor forma de introdução à obra de Christopher Hitchens


Christopher Hitchens é um dos meus heróis, um dos meus escritores prediletos. Da vida. Nunca escreveu ficção por considerar lhe faltar "musicalidade". Sua obra se constitui de artigos, reviews e livros de não-ficção publicados ao longo da vida - o mais famoso deles sendo o polêmico best-seller "Deus Não É Grande - Como a Religião Envenena Tudo".

Falecido em 2015 devido a um câncer de esôfago, Hitchens podia gastar horas defendendo seus heróis (George Orwell, Thomas Jefferson, Thomas Paine) ou dias atacando seus desafetos; inimigos do quilate de Bill Clinton ("testa de ferro subserviente de todo tipo de interesses corporativos"), Henry Kissinger ("mentiroso, assassino, criminoso de guerra"), Madre Teresa de Calcutá ("amiga da pobreza e não dos pobres") e Deus ("totalitário", "déspota", "com eterna necessidade de adoração").

Apesar de herói, estou longe de concordar 100% com as opiniões de Hitchens. Sempre achei seu ateísmo tão proselitista quanto as religiões que ele criticava, sua defesa à Guerra do Iraque o fez perder muita gente melhor que eu, e ele odiava esportes - atividade que gosto muito. Mas o próprio Hitchens já dizia, "Importa como você pensa e não o que você pensa".

Difícil para um brasileiro acostumado à polarização e sectarismo político entender a importância de Hitchens. Livre-pensador, franco-atirador, dissidente são algumas definições possíveis, mas que ele próprio não aprovava. Um intelectual que estraçalhava a direita e a esquerda com mesmo fervor. Hitchens sempre foi aquele divergindo da maioria. Contestar é preciso.

"Cartas" é o melhor livro de introdução à sua obra. (Um caminho sem volta, caso você não seja o tipo de pessoa que busca aprovação para seu pré-definido alinhamento político). Pegando emprestado a forma epistolar de Rainer Maria Rilke e seu "Cartas a um Jovem Poeta", Hitchens utiliza 18 capítulos e curtas 129 páginas para "oferecer algum conselho aos jovens inquietos que queiram evitar a desilusão".

Seus amigos mais memoráveis, entre eles os renomados romancistas Ian McEwan, Salman Hushdie e Martin Amis, costumam dizer que Hitchens falava da mesma forma que escrevia, com coesão textual, lógica argumentativa e uma rapidez de pensamento sobrenatural. Hitchens era leitor voraz. Seus debates disponíveis no YouTube são viciantes e seu livro de memórias, "Hitch-22", é imperdível.

"Cartas" é Hitchens em sua essência. Eu não poderia recomendar mais. Aliás, posso sim. Recomendo a coletânea de artigos (em inglês) "Arguably", um catatau de quase mil páginas com o melhor de Hitchens.

Abaixo selecionei alguns fragmentos de "Cartas a um Jovem Contestador":

Sobre a necessidade de contestar
"A maioria das pessoas, na maior parte do tempo, prefere buscar aprovação ou segurança. Isso não deveria nos surpreender (esses desejos tampouco são desprezíveis em si mesmos). Entretanto, em todas as épocas há pessoas que se sentem, de alguma forma, à margem. E não é demais dizer que a humanidade deve muito a tais pessoas, quer reconheça a divida ou não".

"Com frequência, a determinação de um indivíduo é suficiente para desmotivar aqueles em que a coragem é produto do grupo".

Sobre o confronto de ideias
"Há algo de idiota naqueles que acreditam que o consenso é o maior bem".

"Decerto lhe foi ensinado que a verdade não reside em um pólo ou outro, mas em algum lugar no meio. (...) A verdade não pode mentir, mas se pudesse mentiria em algum ponto intermediário. Sobre questões graves não há meio-termo."

"Apenas o confronto de ideia e princípios é capaz de produzir algum esclarecimento"

Sobre debates
É muito raro que num debate entre dois protagonistas equivalentes algum deles obternha êxito em convencer ou 'converter' o outro. Porém, é igualmente raro que ao final os antagonistas terminem defendendo as mesmas posições".

Sobre religião
"Considere por um momento como o Céu se parece. Louvação e adoração sem fim, abnegação ilimitada e aviltamento do eu; uma Coréia do Norte Celestial".

"Algumas religiões prometem uma boa dose de prazer carnal e até a opção tentadora de assistir aos tormentos dos amaldiçoados. Tudo o que isso prova é que a religião é feita pelo homem e que os homens criaram deus à sua imagem e semelhança, e não o contrário".

O pensamento da maioria
"A busca de segurança na maioria não é sempre o mesmo que solidariedade; pode ser sinônimo de consenso, tirania e tribalismo".

A ironia
"A ironia é a glória do escravo. O comentário cortante e a nuance espirituosa são o consolo dos fracassados e a única coisa contra qual a pompa e o podem nada podem fazer" 

Conselhos (esse é para colocar numa moldura e pregar na sala)
"Não tenho uma peroração ou toque de clarim para encerrar. Cuidado com o irracional, por mais sedutor que seja. Evite transcendentes e todos os que convidarem a se subordinar e anular. Não confie na compaixão; prefira a dignidade para você e para os outros. Não tema ser considerado arrogante ou egoísta. Olhe todos os experts como se fossem mamíferos. Nunca seja um espectador da injustiça ou da estupidez. Procure o debate e as discussões por eles mesmos; o túmulo fornecerá muito tempo para o silêncio. Suspeite de seus próprios motivos e de todas as desculpas. Não viva para os outros, assim como você não espera que os outros vivam para você".

quarta-feira, 11 de abril de 2018

"Exit West" de Mohsin Hamid usa realismo fantástico para discutir o problema da imigração

"Exit West" ainda está inédito no Brasil; apele para o Kindle, caso se interesse. Vale a pena.
"Em uma cidade cheia de refugiados mas ainda em paz, ou pelo menos não abertamente em guerra, um jovem conhece uma jovem na sala de aula e não conversa com ela. Por muitos dias. O nome dele era Saeed e o dela Nadia".
Com essa linda introdução, o escritor paquistanês Mohsin Hamid abre seu romance Exit West (2017). Figurando em diversas listas de melhores do ano, como a do New York Times, e finalista do prestigioso Booker Prize, Exit West é um romance utópico ambicioso que discute um dos mais controversos temas da atualidade: a imigração.

Em uma cidade islâmica não nomeada Saeed começa um romance com a Nadia. Ele é conservador em seus hábitos; religioso, celibatário, desapegado de tecnologias e defensor da não agressão frente ao combate com o inimigo. Ela é independente, sexy, não desgruda do celular, experimenta maconha e cogumelos, partidária da defesa armada em tempos de guerra e usa um extenso robe preto, não para mostrar devoção ao Islã, mas para evitar assédios de "homens agressivos e policiais, e de homens agressivos que são policiais". 

Logo a vida dos dois será devastada pela guerra: "Em tempos violentos há sempre aquele primeiro conhecido ou pessoa íntima da gente, que, quando é atingido, faz com que aquilo que parecia um pesadelo, subitamente, torna-se visceralmente real".

A descrição da progressiva degradação social e privação de liberdades em tempos de guerra é didaticamente dolorosa: suspensão de passaportes, cortes de internet, toque de recolher, barricadas, desaparecimento de pessoas, funerais cada vez mais vazios. Até o ponto em que um jogo de futebol com uma cabeça humana no lugar da bola passa a ser algo prosaico.

Nesse contexto de dor, misteriosamente começa a surgir ao redor do mundo portas mágicas que conectam as mais diversas partes do globo. É através das portas que Saeed e Nadia migram da cidade anônima para os campos de imigração em Santorini e destes para uma Londres sitiada. São Francisco na Califórnia é o cenário do desfecho. Com o artifício "emprestado" dos livros infanto-juvenis das "Crônicas de Nárnia" de C.S. Lewis, essas portas acabam se transformando em um meio de fuga - real, para os personagens; e metafórico, para nós leitores.

Hamid está pouco interessado em explicar detalhes sobre o funcionamento das portas. O que lhe interessa é o que a imigração representa para o indivíduo e para o mundo:
"A porta não revelava o outro lado, e também não refletia o que estava desse lado, assim parecia tanto quanto um começo quanto o fim (...) As portas eram tanto como nascer e morrer. (...) Mas assim são as coisas quando se migra, nós excluímos de nossas vidas aqueles que ficam para trás".
Na utopia de Hamid, assim como o mundo se adaptou e permitiu (ao menos em teoria) a igualdade de direito entre outras minorias, a adaptação ao livre trânsito de pessoas seria apenas questão de tempo.: "o apocalipse parecia ter chegado e ainda assim não parecia apocalíptico, mesmo com as mudanças deixando as pessoas irritadas isso não eram o fim, e as vidas continuavam a seguir seu curso".

Na base dessa aceitação estaria o fato de que todos temos a mesma origem e o conceito de nativo não teria qualquer amparo étnico - como o norte-americano pode questionar um estrangeiro sendo ele estrangeiro em terras antes habitadas por nativos indígenas? Para Hamid, "todos somos migrantes no tempo" e se "todos somos estrangeiros, de certa forma, ninguém o é". 

O livro é lindo e tem uma linguagem simples, sem muitos floreios, mas cheia de lirismo. Achei que Hamid errou apenas em alguns pontos: 1) ele deixa muito evidente os artifícios batidos que utilizou para fazer conexão com todo tipo de leitor (há o personagem conservador, a rebelde, o que faz sacrifício familiar, etc); 2) na sua ambição em abordar algo grandioso e tornar a história global ele insere no romance fragmentos de histórias ao redor do mundo que são muito fracos quando comparados à história central (uma exceção é o fragmento sobre um relacionamento homossexual entre dois idosos em Amsterdã); 3) O romance entre o casal principal não decola muito (talvez por Nadia ser uma personagem muito mais interessante que Saeed).

Ainda assim a leitura vale muito a pena e o livro é altamente recomendado.

segunda-feira, 19 de março de 2018

"Meridiano de Sangue" de Cormac McCarthy é a Literatura em seu esplendor máximo

"Meridiano Sangrento, ou O Amanhecer Vermelho no Oeste" (1985) é a obra-prima do norte-americano Cormac McCarthy. O livro é a obra "mais forte e memorável já escrita por uma novelista americano vivo" segundo o maior crítico literário vivo Harold Bloom. Para Bloom nem mesmo Pynchon, DeLilo ou Philip Roth ultrapassam McCarthy. Lendo "Meridiano" conseguimos entender o porquê desse tom superlativo de Bloom.

O romance é ligeiramente baseado em um relato pessoal e em pinturas de Benjamin Chamberlain durante a guerra do México em meados do séculos 19. A trama segue 45 anos na vida de um personagem chamado apenas de "o garoto". A abertura do romance é linda:
"Eis o garoto. É magro e pálido, usa uma camisa de linho fina e rasgada. Põe lenha no fogo e cozinha (...) A mãe, falecida havia quatorze anos, incubou em seu próprio seio a criatura que a levaria embora. O pai jamais pronuncia o nome dela, o filho não sabe esse nome. Tem uma irmã no mundo, que nunca mais verá. Pálido e sujo, observa. Não sabe ler nem escrever e nele já brota o gosto pela violência irracional. Toda história presente naquele rosto, a criança o pai do homem".
 Após fugir de casa o garoto, entre percalços violentos diversos, termina sendo cooptado por Glanton e sua gangue, um grupo de mercenários contratados por governantes mexicanos e texanos para matar e escalpelar índios. 

As 320 páginas são divididas em 23 capítulos desafiadores. Há parágrafos longos, complexos, sem vírgulas, que exigem atenção redobrada. Confesso que só consegui ultrapassar as primeiras 20 páginas na terceira tentativa de leitura (Bloom teve o mesmo problema). Mas uma vez vencido esse obstáculo é difícil parar. 

A sensação é de se estar presenciando um pesadelo surreal e claustrofóbico imerso em sangue e urgência. Assim que entra em cena o magnético personagem do juiz Holden sua atenção é sugada para dentro do romance.

O juiz é uma criação literária que ultrapassa os limites do livro. Deliberadamente fazendo alusões ao Lúcifer de "Paraíso Perdido", ao Mefistófeles de "Fausto" e ao capitão Ahab de "Moby Dick", o juiz é a personificação do mal, um profeta do apocalipse. Muito de sua mística é decorrente de sua descrição no capítulo X, que narra a primeira aparição do juiz: nu, sozinho, no meio do deserto. Um "nascimento" compatível com sua estranheza. 

Fisicamente ele é um albino de mais de dois metros de altura, "careca feito pedra", sem qualquer sinal de barba, sobrancelhas ou cílios. Aterrorizantes feições infantis. Um polímata, versado em geologia, tiro, montaria, filosofia, dança, violino, línguas. Ele é um mensageiro do caos. 
"Esta é a natureza da guerra, cujo prêmio é ao mesmo tempo o jogo e a autoridade e a justificação. Vista dessa forma, a guerra é a mais legítima forma de adivinhação. É a verificação da vontade de um e da vontade de outro dentro daquela vontade maior que por prendê-los é obrigada a escolher entre os dois. A guerra é o jogo supremo porque a guerra é em última análise a violação da unidade da existência. A guerra é deus".
Atuando como uma espécie de líder espiritual e braço direito de Glanton, o juiz eclipsa todos os outros personagens, que em sua presença se sentem como o leitor: frágeis, hipnotizados, amedrontados. Soam menores até as duas outras personagens fascinantes de Meridiano: o garoto-"herói" e o sanguinário psicopata Glanton. Quando o juiz fala, ouvimos coisas como: 
"O homem acredita que os segredos do mundo nunca serão revelados vive no obscurantismo e no medo. A superstição o tragará. A chuva corroerá as proezas de sua vida. Mas o homem que impõe a si mesmo o dever de encontrar o início da sequência da trama por essa mera decisão estará tomando conta do mundo e só através desse domínio ele poderá ditar os termos de seu próprio destino".
 Soa profético, elegíaco e catequista. E é. A Bíblia é sem dúvida alguma a maior inspiração de "Meridiano", sendo o juiz um anticristo. Ao final do livro nos deparamos com um juiz que não envelheceu uma ruga sequer em todos os anos. Ele diz que nunca dorme e que nunca vai morrer. Ele é humano? Ele é imortal? Seu único antagonista, o garoto, sabe que o juiz está além de inícios ou fins: 
"Nem haveria um método para determinar suas origens (...) Qualquer ciência que pudesse invocar para aproximar-se da poeirenta substância primal trazida pelo vento há milênios não descobriria nenhum traço de um ovo atávico primitivo através do qual pudesse calcular seu princípio".
O próprio juiz Holden sugere uma batalha maniqueísta entre ele e o garoto: "Nossas animosidades já estavam criadas e esperando muito antes de nos conhecermos".

A princípio o garoto pode parecer o único personagem com poder de misericórdia no romance. Nas palavras do juiz ele é "o único que guardou em sua alma um pouco de clemência pelos gentios". Mas tal clemência, quando vista de perto, é voltada apenas para seus colegas do bando de assassinos. A compaixão para com criminosos é uma virtude? 

Não vou estragar o final para aqueles que ousarem se arriscar na leitura, mas o último capítulo é de uma estranheza metafísica sublime. Algo que faz empalidecer qualquer obra recente, mesmo do próprio McCarthy.

P.S.: o livro foi traduzido em 2009 por Cássio de Arantes Leite em edição da Alfaguara, mas atualmente está esgotado e fora de catálogo. 

quinta-feira, 1 de março de 2018

Em livro premiado, Jesmyn Ward insere Realismo Fantástico no Sul Profundo dos EUA



Este texto contém SPOILERS. 

"Sing, Unburied, Sing" da escritora norte-americana Jesmyn Ward foi um dos livros mais premiados de 2017. Entre outros, entrou na lista das 5 melhores ficções do New York Times e venceu o prestigioso National Book Awards - prêmio que a própria Ward já havia vencido em 2011 com "Salvage the Bones". Ainda sem edição no Brasil, os interessados devem ler no original em algum e-reader. 

O romance retrata uma problemática família negra do chamado Sul Profundo dos EUA. Incluindo Estados como Alabama, Mississippi e Georgia, essa região vive atormentada pelo passado atroz de escravidão e sua relação o conservadorismo branco local. 

Elogiado pela narrativa faulkneriana que dá voz a múltiplos narradores e pela utilização de elementos do Realismo Fantástico de Garcia Marquéz, o livro  não é para corações fracos.

Jojo é um sofrido adolescente negro, filho de uma mãe negligente e drogada, Leoni, e de um um pai branco relapso, Michael, que cumpre sentença de 3 anos por tráfico de drogas. As figuras paternas de Jojo e de sua irmã Kayla de 2 anos são os avós, 'Pop' Rivers e 'Mom' Philomene. Pop aparenta ter algum demônio passado, relacionado a um adolescente chamado Richie, com quem cumpriu pena na simbólica penitenciária de Parchman, no Mississipi. Mom, uma devota de religiões africanas, está morrendo de câncer.

Quando Michael é liberado da cadeia, Leoni resolve botar os filhos num carro, para dar um falso verniz de família, e atravessar o estado para recepcionar o marido. Com Leoni também segue viagem sua amigga Misty. Sua descrição de Misty é representativa da projeção social de Leoni (ou seria dos negros americanos como um todo?): "Suas sardas, seus lábios rosados e finos, seu cabelo loiro e a brancura leitosa resiliente de sua pele; quão fácil tem sido para ela, durante toda a vida, fazer do mundo um lugar amigável?"

No caminho, Leoni ela usa cocaína, deixa os filhos passarem fome e, quando Kaila adoece, se abstém de cuidar da filha. Esta road trip ocupa a primeira metade do livro e é carregada de simbolismos e situações que refletem o que a herança escravagista fez dos negros na sociedade americana atual. Uma blitz feita por um policial rodoviário racista é especialmente marcante. Narrada pela voz de Leoni, a sequência mostra a criança Jojo sendo exposta à vida do adulto negro nos EUA de hoje:
"É fácil esquecer o quão jovem é Jojo até vê-lo em pé ao lado do policial. É fácil olhar para ele, sua altura imponente, sua barriga proeminente, e pensar que ele já está crescido. Mas ele é apenas um bebê. E quando ele enfia a mão no bolso e o policial saca sua arma e aponta para seu rosto, Jojo não é nada além de uma criança com joelhos gordos e tortos. Eu deveria gritar, mão não posso".
Jojo que abre o romance dizendo que "gosta de pensar que sabe o que é a morte" e que teme que seu avô descubra que ele "não é velho o suficiente para encarar a morte como uma homem deve" é o personagem que mais gera empatia. De certa forma esse é um romance sobre a chegada da idade (coming of age, como dizem em inglês).

Na segunda parte do livro, ganha voz um terceiro narrador: o fantasma do adolescente Richie. O garoto, que teve um trágico destino, aparece em sua forma sobrenatural apenas para Jojo, a quem pede ajuda para reencontrar Pops. Se Jojo é assombrado por Richie, sua mãe não fica atrás. Leoni vive sendo atormentada pelo fantasma de Given, o irmão que foi assassinado pelo primo de seu marido. Descobriremos que os fantasmas são almas de pessoas mortas de forma violenta devido a preconceitos de raça e que cabe a eles "encontrar sua canção", ou seja, ter suas histórias contadas, para assim poderem encontrar a paz. 

Ward deixa a metáfora bem clara no título: os mortos devem cantar/contar suas histórias. Ward faz sua parte com o romance e conta a história dos negros. Dá-lhes a sua canção. Ela dá voz à eles enquanto relembra e lamenta o caminho árduo que os trouxe até aqui.

Por mais belo e bem escrito que seja, achei o livro cansativo. Além do fato que histórias sobre sofrimento podem ser extremamente desconfortáveis para nossa capacidade de ouvi-las, os fantasmas não me pareceram tão fáceis de assimilar, soando forçados na maior parte do tempo. A verdade é que esse me parece um livro mais necessário do que bom.

terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

No irrepreensível "A Estrada", Cormac McCarthy e a esperança no fim do mundo

Angústia exasperante no fim do mundo
Esse texto pode conter SPOILERS ou sugerir desfechos da história.

Esses dias recomendei a um amigo "A Estrada" de Cormac McCarthy, que já havia lido em meados de 2007. 

Por curiosidade peguei minha cópia e comecei a reler o primeiro parágrafo. Só fui parar na página 234, a final. 

"Quando ele acordava na floresta no escuro e no frio da noite, estendia o braço para tocar a criança adormecida ao seu lado. Noites escuras para além da escuridão e cada um dos dias mais cinzentos do que o anterior. Como início de um glaucoma frio que apagava progressivamente o mundo". 

Numa irrepreensível narrativa em terceira pessoa, o romance conta a história do homem e seu filho, inominados, "cada um o mundo inteiro do outro", vagando por um mundo pós-apocalíptico. Fugindo do frio, da fome, da violência canibal dos poucos homens restantes na face da Terra. Relegados à posição animais em um mundo devastado por uma tragédia não revelada, "todas as coisas retiradas de seu suporte". 

Com medo e caos constantes, o homem escolhe viver como um fantasma por causa de seu filho. Escolhe sobreviver, quando a opção pela morte lhe traria a paz. Caminho, a muito trilhado por sua mulher - que aterroriza seu mundo cinzento com lembranças e sonhos coloridos. Mesmo cercado por carcaças humanas, um ar tóxico e um sol que nunca brilha, o homem ainda tenta proteger a criança das desgraças do mundo. Mantê-la inocente. "Tudo bem", ele diz.

A Estrada do título não é o pavimento que cruzam sem objetivo em direção ao Sul, mas a estrada simbólica para o fim do homem. O fim da esperança de que a criança possa ver um mundo melhor: "Ele não podia acender no coração da criança o que era cinzas no seu próprio". 

A narrativa de McCarthy é épica. Faulkner, Melville e Bíblia se fundem em tautologias proféticas e descrições tão lindas que a tornam o sofrimento quase tátil: "Cascas incrédulas de homens cambaleando pelas estradas como migrantes numa terra febril. A fragilidade de todas as coisas finalmente revelada".

Gosto de pensar que o elíptico parágrafo final é feliz. McCarthy prefere citar o início das coisas "mais antigas que os homens" ao invés do seu final. Talvez ele esteja sugerindo que o fim é um novo começo: "Talvez na destruição do mundo fosse finalmente possível ver como ele fora feito (...). O grave anti-espetáculo das coisas deixando de existir".

"A Estrada" foi vencedor so prêmio Pulitzer 2007 para ficção e virou um filme apenas regular com Viggo Mortensen. Tem tradução belíssima de Adriana Lisboa para o selo Alfaguara da Companhia das Letras. É o melhor livro de introdução para o magnífico escritor que é Cormac McCarthy. Seu título mais famoso é "Onde Os Velhos Não Têm Vez", adaptados pelos irmãos Coen em um Oscarizado filme de 2007. Mas seu auge é "Meridiano Sangrento" (1985), um livro tão espetacular que valeria por si só sua inserção no cânone da literatura mundial. Post sobre ele em breve. 

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

"Reparação" de Ian McEwan discute a utilização da escrita como mecanismo de expiar pecados

"Reparação" (2001) de Ian McEwan: 7ª edição da Companhia das Letras
O texto seguintes pode conter SPOILERS.

No ótimo filme independente "Paranoid Park" de Gus Van Saint, um adolescente angustiado tenta lidar com a culpa de ter participado, sem querer, da morte de um segurança. Termina encontrando algum conforto moral ao escrever uma carta de confissão, na qual exorciza sua culpa. Em seguida, ele queima a carta.

No romance "Reparação", do britânico Ian McEwan, a expiação de culpa por um erro do passado também encontra refúgio na escrita. Nesse aspecto é um romance metalinguístico: a propria literatura é o personagem central.

Ian McEwan iniciou sua vida literária com romances e contos mórbidos que lidavam com incesto ("The Cement Garden"), sadomasoquismo ("The Comfort Strangers") e eutanásia ("Amsterdam", pelo qual ganhou o prestigioso Booker Prize em 1998). "Reparação" começa ensolarado.

No verão de 1935, na opulenta casa de campo da família Tallis, três personagens têm suas vidas drasticamente modificadas pelos acontecimentos daquele dia. O casal Cecilia e Rob, que elevam a relação patroa-empregado-amigos à condição de amantes, e a pretensa escritora Briony, de 13 anos.

Briony é o fio condutor de "Reparação". Dona de uma imaginação fértil, um ego inflado e um talento metódico para a escrita, ela é o alter-ego de McEwan, a quem ele usa para explicar a subjetividade dos escritores: "Cada vez que falava sobre a fraqueza de um personagem, inevitavelmente se expunha; era fatal que o leitor imaginasse estar ela descrevendo-se a si própria. De que outra maneira poderia ter descoberto aquilo?"

Traída por essa imaginação, por um amor platônico por Rob e por uma senso de justiça infantil, Briony termina por incriminar Rob por um crime que ele não cometeu, separando-o de sua irmã Cecília e selando um futuro sombrio para todos eles. 

A segunda parte do livro foca em Rob, agora um soldado e ex-detento, lidando com a retirada do Exército Britânico na praia de Dunkirk, na Segunda Guerra Mundial. O apego de Rob às lembranças com Cecília, "desbotadas por excesso de uso", são o contraponto à fiel descrição da Guerra.

A terceira parte segue Briony já adulta lidando com a culpa do erro do passado enquanto estuda enfermagem e tenta emplacar sua vida de escritora. 
A única solução concebível seria o passado não ter acontecido. Se Robbie voltasse... Briony ansiava pelo passado de outra pessoa, por ser outra pessoa.
A quarta e última parte do livro trás uma reunião da família Tallis já em 1999, onde uma Briony envelhecida e já escritora renomada tenta conciliar o passado e reparar os erros através da literatura em um metalinguístico parágrafo final.
Como pode um romancista realizar uma reparação se, com seu poder absoluto de decidir  como uma história termina, ele é também Deus? Não há ninguém, nenhuma entidade ou ser mais elevado, a que ela possa apelar, ou com que possa reconciliar-se, ou que possa perdoá-la. Não há fora dela. Na sua imaginação ela determina os limites e condições. Não há reparação possível para Deus nem para os romancistas, nem mesmo os romancistas ateus. Desde o início a tarefa é inviável, e era justamente essa a questão. A tentativa era tudo. 
Briony revela então qual foi sua tentiva foi escreverem um livro sobre Rob e Cecília:
Agrada-me pensar que não é por fraqueza nem por evasão, e sim como um gesto final de bondade, uma tomada de posição contra o esquecimento e o desespero, que deixo os jovens apaixonados viver e ficar juntos no final. Dei-lhes a felicidade, mas não fui egoísta a ponto de fazê-los me perdoar. 
Outro Item:
Seria impossível falar de "Reparação" sem citar a já famosa cena de amor na Biblioteca - belamente filmada na adaptação cinematografica com Keira Knightley. A beleza tátil da descrição beira o sobrenatural:
Ousados, deixaram que as pontas da línguas se tocassem, e foi então que ela emitiu um som débil, como um suspiro, o qual - ele se deu conta depois - assinalou uma transformação. Até então havia algo de ridículo em estar um rosto conhecido tão próximo do seu. Sentiam-se observados pelas próprias infâncias. Mas com o contato das línguas, daqueles músculos vivos e escorregadios, carne úmida tocando carne, e o som estranho que o contato provocou nela, tudo mudou. Aquele som pareceu penetrá-lo, percorrer seu corpo de alto a baixo, abrindo-o por inteiro, permitindo-lhe sair de si próprio e beijá-la livremente. O que antes era constrangimento agora era impessoal, quase abstrato. (...) Ele pronunciou as três palavras que nem toda arte barata e toda má-fé do mundo conseguem trivializar de todo. Ela as repetiu, com exatamente a mesma ênfase sutil no verbo, como se fosse a primeira pessoa a pronunciá-las na história. Ele não tinha crenças religiosas, porém era impossível não imaginar uma presença ou testemunha invisível ali, não acreditar que essas palavras pronunciadas em voz alta eram como assinaturas num contrato invisível.




sábado, 25 de novembro de 2017

O Psicólogo Paul Bloom Utiliza Seu Livro "O Que Nos Faz Bons ou Maus" para Analisar a Moralidade Humana



Recentemente fui pai. Preocupado com a difícil tarefa de criar uma criança busquei ajuda na literatura. Quando digo que a tarefa é difícil, não me refiro apenas ao esgotamento físico embutido na paternidade, mas também ao suplício mental que é a pretensa tarefa de incubir valores morais na sua prole.

Sou um leitor comum. São raros os momentos que me aventuro ao academicismo de obras como A Metafísica da Moral de Immanul Kant ou chafurdo no acervo de David Hume

O psicólogo canadense Paul Bloom é mais minha praia. Bom escritor, eloquente, referências acadêmicas mescladas a citações da cultura pop moderna. É o cara. Seu livro O Que Nos Faz Bons ou Maus (2014, editora Best Seller, 307 páginas) é, portanto, recomendadíssimo a quem se interessar pelo estudo da moral e ética, mas não quer divagar em cabecismo existencial e, às vezes, prolixo.

Bloom é professor da renomada Universidade de Yale, nos EUA e é especializado em desenvolvimento infantil. Entre seus livros estão How Children Learn the Meanings of Words e Against Empathy: The Case for Rational Comparisson.

No prefácio, Bloom dá o tom que permeia ao longo de todo o livro:  
Como podemos compreender melhor nossas naturezas morais? Muitos concordam com Francis Collins que esta é uma questão teológica (...). Alguns preferem abordar a moralidade a partir de uma perspectiva filosófica, levando em consideração não o que as pessoas pensam e como elas agem, mas questões de ética normativa (grosso modo, como se deve agir) e de metaética (grosso modo, a natureza do bem e do mal). (...) Como psicólogo do desenvolvimento, estou interessado, primordialmente, em pesquisar a moralidade sob a ótica de suas origens em bebês e crianças pequenas.
Ao longo de enxutos 7 capítulos, Bloom se utiliza de princípios evolutivos, citações de autores clássicos, analogias com cinema e TV, e muitos estudos realizados com bebês - os quais aparentam ter capacidade de "fazer certos tipos de apreciações" entre o bem e o mal, sugerindo não que "a  moralidade esteja presente desde o nascimento", mas que talvez sejam "produtos da evolução biológica". Veja abaixo, um exemplo dos curiosos (e fofos) testes a que os bebês são submetidos:


No capítulo sobre empatia e compaixão há uma análise sobre psicopatas (indivíduos desprovidos dos dois traços) e a aterradora sugestão de que a psicopatia é mais alta em pessoas bem sucedidas do mundo dos negócios e política. Bloom não vê a empatia com bons olhos (ele tem um livro inteiro dedicado ao tema) e acha que "se colocar na pele de outro" nem sempre pode ser benéfico, uma vez que você pode ser indiferente àqueles com os quais não tem afinidade.

Acerca de equidade, status e punição: "Um erro no passado cometido contra nós, sem um pedido de desculpas ou uma reparação, é uma espécie de alegação. Ele atesta com efeito, que podemos ser tratados desta forma, e que tal tratamento é aceitável. Este é um dos objetivos do pedido de desculpas - restabelecer o status da vítima. (...) Sem um pedido de desculpas, eu poderia me sentir tentando a recuperar meu status através de retaliação."

No capítulo entitulado de "Os outros", Bloom conjectura a respeito do conceito de "fidelidade ao grupo" e o medo/aversão ao diferente estarem na origem do racismo. E mesmo pessoas corretas podem ter preconceitos inconscientes: "Psicólogos sociais descobriram que muitos participantes brancos de suas pesquisas, que não são preconceituosos, experimentam uma ansiedade opressora para não parecerem racistas ao interagir com pessoas negras".

Há um capítulo inteiro dedicado à aversão, sexualidade e seus tabus. No último capítulo, Bloom discute o altruísmo: "Como observou Aristóteles, um dos traços do indivíduos virtuosos é que eles aspiram transformar um bom comportamento racional em um hábito involuntário". Fica a dica.

Outro Item:

Bloom não escreveu um livro de auto ajuda, mas vale destacar algumas dicas para os pais:

  1. Matricular filhos em escolas multirraciais previne a criação de filhos racistas. Explicação: crianças convivendo de forma correta, expandem seu círculo moral, incluindo outras raças.
  2. Crianças mais expostas a histórias e viagens desenvolvem mais empatia e se identificam com pessoas de perspectivas diferentes das suas. Explicação: "a exposição a mundos que só podem ser vistos através dos olhos de um estrangeiro, explorador ou um historiador pode transformar uma norma inquestionável ('é assim que se faz') em uma observação explícita ('Isso é o que nossa tribo está fazendo agora')"
  3. Deixe claro que seus filhos não são crianças moralmente privilegiadas e lhes aplique exercícios de empatia. Ex.: "Ele está chateado porque estava orgulhoso da torre que construiu e você derrubou".

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

"A Magia da Realidade" de Richard Dawkins é a melhor aula de introdução ao mundo da ciência que seu filho (ou você) poderia ter

Linda edição da Cia das Letras para o maravilhoso livro do biólogo Richard Dawkins


Poucos presentes serão tão valiosos para seus filhos (ou para você mesmo) quanto o lindo livro A Magia da Realidade: Como Sabemos O que é Verdade do biólogo evolucionista britânico Richard Dawkins. O título remete à fascinação de Dawkins com as belezas do mundo e às evidências que temos disponíveis para explicar como funcionam. É uma ode de amor ao método científico.

Já no belíssimo capítulo de introdução ("Como Sabemos O Que é Realidade?), Dawkins deixa bem claro de qual lado está na briga entre mitos e ciência. Não se engane, leitor, Dawkins é ateu convicto e fervoroso defensor da ciência. Entre seus livros estão Deus, Um Delírio e O Relojoeiro Cego, manifestos que se utilizam de evidências científicas para combater mitos, superstições e o criacionismo (ideia da criação do mundo por um ser superior). Em Magia da Realidade ele pega mais leve. Na verdade, o amor pela ciência é mais evidente que o ódio pelos mitos. Muitos mitos ele apenas relata (com um toque de ironia, é claro). 


Relato de mitos na edição em inglês


O livro tem 10 capítulos, com títulos em forma de perguntas ("O que é o Sol?", "Por que coisas ruins acontecem?"). A estrutura básica do capítulo é citar lendas, mitos e superstições de diversas culturas que tentam dar resposta às perguntas, para depois confrontá-las com as respostas dadas pela ciência. 

A narrativa é leve e muito, mas muito didática. Em um capítulo entitulado "Como e quando tudo começou?", Dawkins utiliza a "ola" do estádio de futebol para explicar o efeito Doppler e como as ondas sonoras e ópticas se propagam. É fascinante perceber que poucas páginas após entender como o prisma decompõe a luz branca, você já está utilizando esse conhecimento para compreender algo tão complexo quanto a expansão do universo e o Big Bang.

O livro é lindamente ilustrados pelo designer britânico Dave Mckean, famoso por colaborar com ilustrações para obras de Neil Gaiman (Sandman, Orquídea Negra, Coraline). O diálogo das ilustrações com o texto é um prazer à parte. Em um capítulo que explica a gravidade, o texto é atraído por um corpo celeste; quando se explica a constituição vazia do o átomo, a página fica totalmente branca com apenas elétrons circulando um pequeno núcleo. Se a intenção era manter preso às páginas os atuais leitores com a atenção de uma mosca varejeira, acho que Dawkins/McKean conseguiram.

Watson, Crick e o método científico envolvido na descoberta do DNA (aqui na edição em inglês)
Outro Item:

No capítulo "Quem foi a primeira pessoa?", Dawkins utiliza uma máquina do tempo para viajar ao passado e nos ajudar a entender a evolução da espécie (especialidade do autor). Se isso fez você se lembar da série televisiva Cosmos apresentada pelo astrônomo Carl Sagan (e atualizada recentemente por seu admirador Neil deGrasse Tyson), pode ficar tranquilo que você está certo. Aliás, se você gostar do livro assista Cosmos; se gosta de Cosmos, leia A Magia da Realidade. Vai se divertir muito.

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Você precisa ler P.G. Wodehouse

Edições em inglês da coleção de P.G.Wodehouse e sua maior criação: a dupla Wooster e Jeeves
Pesquisei no Google e constatei com tristeza: os livros de P. G. Wodehouse estão fora de catálogo no Brasil. Uns poucos e raros exemplares podem ser encontrados no Estante Virtual.

Mas afinal, quem é P. G. Wodehouse?

Pelham Grenvile Wodehouse  (pronuncia-se: Ood-Ráus) foi um prolífico escritor britânico de humor. Abandonado pelos pais aos dois anos de vida, Wodehouse viveu entre babás, tias, mordomo e amigos de colégio interno na infância. Foi bancário, prisioneiro dos nazistas e, no pós-guerra, mudou-se para os Estados Unidos, onde escreveu boa parte de sua obra.

Suas histórias sempre se passam em uma Inglaterra fantasiosa, inocente e idílica, onde os grandes problemas do mundo são tias malvadas, embaraços amorosos e jantares familiares. Não há engajamento político, debate social ou mesmo sexualidade (uma grande abdicação para um escritor de humor, como lembrou George Orwell). Como bem descreve o comediante Stephen Fry na introdução da coletânea What Ho! The Best of Wodehouse: "Camas para Wodehouse não são locais de amor e luxúria, são apenas um conveniente móvel para se esconder quando  se está sendo perseguido". 

Wodehouse criou dezenas de personagens memoráves, mas sem dúvida nenhuma sua grande criação é a dupla Bertie Wooster e Jeeves. O narrador Bertie é um aristocrata londrino cuja mais brilhante qualidade é entrar em enrascadas envolvendo amigos e mulheres. Jeeves é um mordomo fino, extremamente educado e intelectualizado que salva Bertie das encrencas utilizando seu conhecimento psicológico e literário enciclopédico.

O cuidado de Wodehouse com a linguagem é de ourives. As tramas são meticulosamente intrincadas e grande parte do humor vem de situações absurdas (o intelectual Jeeves tendo que acalmar um pato irritado, um introvertido amante se embebedando para "criar" coragem com a amada) e comparações ("ela parecia um tomate se esforçando para se expressar", "Ele se encolheu como uma lesma no sal"). Veja esse fragmento do Código dos Woosters, quando Bertie e seu amigo Gussie enfrentam o bully nazista Roderick Spode:
     'Spode!' Eu disse rispidamente, enquanto tive uma ideia que chacoalhou tudo. (...)
     
'Bem, o que você quer?'
      Eu ergui um sobrancelha ou duas.
     'O que eu quero? Essa é boa. Gostei. Já que você perguntou, Spode, o que eu quero é saber por que diabos você fica entrando no meu quarto privado, ocupando o espaço que eu uso para outros propósitos e me interrompendo quando estou batendo papo com amigos pessoais? Realmente, a gente tem tanta privacidade nessa casa quanto uma dançarina de strip-tease. Eu imagino que você tenha seu próprio quarto. Volte para ele, seu porcalhão gordo, e fique lá.'
     Eu não resisti olhar de relance para Gussie, para ver como ele estava absorvendo tudo isso, e foi um prazer notar em seu rosto um crescente olhar de admiração e adoração, tal qual uma dama da Idade Média olhando para um Cavaleiro armado derrubando um dragão. 
Wodehouse foi uma indicação de um dos meus heróis, o autor britânico Christopher Hitchens. Hitch era tão fã de Wodehouse que chegou a dizer que: "Agora que a edição da Penguin de Mating Season tem minha introdução e meu nome aparece na mesma página que P. G. Wodehouse, não tenho mais qualquer ambição literária".

Por tudo descrito acima te peço: compre no Estante Virtual, ou aprenda inglês e leia no original,  ou importe em português de Portugal... enfim. Dê um jeito. Mas leia Wodehouse.

Outro Item

Meus preferidos de Wodehouse:
  • Então Tá, Jeeves (Right Ho, Jeeves, 1934): meu livro predileto de Wodehouse. Tem o famoso discurso de Gussie Fink-Nottle bêbado na entrega de prêmios da escola, talvez a passagem de um livro que mais me fez rir na vida.
  • O Código dos Woosters (The Code of the Woosters, 1938): geralmente eleito como melhor livro de Wodehouse pelos fãs. Aqui Bertie tem que visitar Totleigh Towers, moradia de Sir Watkin Bassett, para tentar roubar uma tapeçaria para sua tia Dhalia. Essa sequência de Right Ho, Jeeves introduz o "ditador amador" Roderick Spode, líder do fictício grupo nazista britânico The Black Shorts ("porque quando foi formar sua associação já não havia camisas disponíveis").
  • What Ho! The Best of Wodehouse (2011): porta de entrada para a obra do Mestre. É uma coletânea de histórias curtas das principais personagens de Wodehouse: Jeeves e Wooster, Psmith, Tio Fred, Castelo Blanding, Ukridge e Família Mulliner.