Quando morreu de infarto em Nova Iorque em 1997, Paulo Francis era um jornalista renomado. Articulista no horário nobre da Globo, trejeitos imitados por Chico Anysio, vítima de processo milionário pela Petrobrás (cujo alto escalão ele acusara de corrupção, veja só). Quem o conheceu nessa etapa final da vida provavelmente viu a criatura se tornar maior que a criação. O que é um grande erro. A obra de Paulo Francis tem poucos paralelos na crítica sociopolítica e cultural nacional.
Diários da Corte, de 2009, é uma coletânea de artigos escritos por Francis para a Folha de São Paulo de 1976 até 1990, quando deixou o jornal após brigar com o ombudsman e não se sentir defendido pelo diário. A seleção foi feita pelo jornalista Nelson de Sá e é uma excelente oportunidade para (1) ser iniciado à obra de Francis e (2) compará-lo com os comentaristas sociopolíticos da atualidade.
De juventude trotskista, Francis iniciou a vida cultural como crítico de teatro. Logo passaria para a crítica política, sem abandonar os comentários culturais e do cotidiano.
Durante a Ditadura Militar se juntou a gente do calibre de Millôr Fernandes, Henfil, Ziraldo, Ivan Lessa e Jaguar na edição do Pasquim, um jornal revolucionário na linguagem, nas críticas ao regime militar e aos costumes sociais da classe média brasileira da época.
Paulo Francis era um elitista auto-indulgente. Morava em Nova York e de lá comentava sobre a pobreza cultural brasileira. Fazia troça de todo e qualquer tipo de cultura popular (os Beatles eram um alvo frequente) e tecia loas infinitas à música erudita (Wagner era um predileto), óperas, teatro e a alta Literatura.
Com o passar dos anos, Francis, assim como outros intelectuais de origem trotskista (Christopher Hitchens sendo o mais memorável deles), se encantou com a direita política e seu elitismo ficou ainda mais evidente e proselitista.
A coletânea é para se ler discordando. Por vezes, Francis é misógino, mesquinho e intolerante. Mas o que importa aqui não é o “o quê”, mas o “como”. A mistura fluida de linguagem intelectual e coloquial e o amálgama de citações, faz você ler o livro com um bloquinho de anotações para anotar cada nome citado. Glauber Rocha, Woody Allen, Bernardo Bertolucci, Ingmar Bergman, Truman Capote, John Updike, Edmund Wilson, Gore Vidal são algumas das referências esmiuçadas por Francis. Os artigos em que ele faz um panorama comentado sobre a história da democracia nos EUA, sobre o racismo de cor e sobre a Revolução Russa valem por uma aula de história.
Achei que a seleção pecou ao inserir alguns artigos que envelheceram mal fora da sua contextualização. E, pessoalmente, o Paulo Francis comentarista cultural funciona muito melhor que o Paulo Francis comentarista político. Ler sua crítica de "Apocalipse Now" ou de "A Sangue Frio" após ver/ler a obra é daquelas experiências tão enriquecedoras intelectualmente que nada mais pode ser visto como se via antes.
Fragmentos:
Sobre as celebridades: "O que bebem as celebridades? A nova safra, do Studio 54, fica no vinho branco, qualquer um, ou Tab, coca-cola, sem açúcar, preservando seu organismo para cocaína. (...) Sobre o que conversam celebridades quando estão juntas? Nada, se juntam para serem fotografadas e citadas. (...) Revistas do tipo People atestam o fenômeno que reflete uma total corrupção e uma subserviência completa em face dos que darwinianamente sobrevivem no mar de lama, criaturas da lama, mas perfumadas. Falem mal de mim, desde que falem, é a moral dessa sociedade."
Sobre exposição pública da vida privada: "continuo considerando esse strip-tease psicológico perante estranhos uma forma particularmente vulgar de narcisismo".
Sobre a misantropia: "Aos 50 anos, sofro do que se chama de accidie, um desinteresse por praticamente todos os temas a que dedico minha atenção. Um ceticismo natural, ou que ao menos data dos meus oito anos de idade, se tornou compulsivo e obsessivo. Não acredito em nada, não espero nada, de religião (isso há muito tempo), política, filosofia, etc."